Centésima Página

"OLHAR BRAGA" - Património local e escrita criativa

Estes trabalhos, integrados nas Jornadas Europeias do Património 2018 - "Partilhar Memórias", em parceria com a Câmara Municipal de Braga, encontram-se editados em Brochuras.

Centésima Página

UMA HISTÓRIA POR CONTAR

André Silva
Daniela Rodrigues
Marta Mendes
Renata Braga


Era o dia 30 de dezembro de 1919, o dia do baile. O meu querido amigo António Salazar tinha-me convidado para o baile de fim de ano que costumava realizar na sua casa, em Lisboa. Estava eu em frente ao espelho do quarto do hotel a apertar a minha gravata e tinha a sensação de que aquele dia iria mudar a minha vida e eu não sabia muito bem porquê. Chamei o motorista e pedi-lhe que fosse pelo percurso mais curto porque o baile começava dentro de poucos instantes. No momento em que entrei, deparei-me com o salão mais bonito que alguma vez vira, tinha candelabros cobertos de diamantes, cortinados vermelhos de veludo, todo um ambiente nobre e sofisticado. Estava eu deslumbrado a admirar o salão até que ouvi "- Sr. Comendador Nogueira da Silva, por aqui, por favor." Abandonei o meu deslumbramento e segui as indicações que me tinham sido dadas. Assim que desci as escadas, e entrei num outro salão também muito luxuoso, vi vários cavalheiros e senhoras vestidas a rigor, a maioria com vestidos escuros ou pretos, mas apenas uma única com um vestido cor de pérola. Era uma mulher muito bonita, que embora um pouco mais velha do que eu, tinha tudo aquilo que eu procurava. Não tive coragem de ir falar com ela. Uns minutos depois, Salazar veio ao meu encontro, cumprimentou-me e disse-me "- Ainda bem que vieste, meu amigo". Eu sorri e felicitei-o pela magnífica festa que tinha preparado. Aproveitei também o momento para lhe perguntar quem era aquela bonita e elegante mulher vestida de claro. Ele disse-me que era a filha do doutor em quem ele tinha mais confiança, e disse-me também que ela era de Braga, ou seja, era um bom sinal para mim, pois seria mais fácil encontrá-la. Momentos depois, começou a primeira valsa, vi ali a minha oportunidade, ganhei coragem e aproximei-me dela. Ela olhou-me nos olhos com um olhar ingénuo e doce, fiz-lhe uma vénia e, gentilmente, pedi-lhe para dançar. Ela a princípio hesitou, mas não resistimos e acabamos por dançar juntos. Nesse momento, parecia que naquele belo e enorme salão só estávamos eu e ela, eu e aquela mulher tão bonita e que parecia tão deslocada, tão sozinha. Perguntei-lhe o nome e ela sussurrou-me ao ouvido "Maria Eugénia" e eu fiquei completamente rendido àquela voz. Depois daquela valsa, vieram mais duas e nós continuamos a dançar juntos. A cada passo que dávamos, ficávamos cada vez mais atraídos, parecia amor à primeira vista. Apenas o ruído das 12 badaladas veio interromper o nosso idílico momento. Assim que aquele ruído soou, o baile terminou e nunca mais vi Maria Eugénia. Salazar veio falar comigo pois tinha percebido que eu estava interessado nela e eu não lho consegui negar.

Uns dias depois, procurei, em Braga, a Clínica de que Salazar me tinha falado. Entrei e, de imediato, veio na minha direção o pai de Maria Eugénia. Perguntei-lhe se ela estava e este disse-me que ia chamá-la. No momento em que a vi, os meus olhos brilharam, o meu coração acelerou, sentia-me nervoso pois era a primeira vez que a via depois do baile. Convidei-a para irmos dar uma volta ate à Casa Rolão (onde, anos mais tarde, funcionaria a Livraria 100ª Página) e que tinha um jardim com um lago e algumas árvores, era pequeno, mas muito acolhedor e transmitia-me muita tranquilidade, algo que não é muito comum encontrar em plena cidade. Passamos a tarde toda a conversar; foi, sem dúvida, uma das tardes mais agradáveis da minha vida, nunca pensei alguma vez ter este sentimento por alguém. Ela é uma mulher muito diferente de todas as outras, delicada, carinhosa ... é realmente muito especial. Quando nos despedimos neste nosso primeiro encontro, combinamos encontrar-nos ali todas as semanas. Depois de vários encontros, ganhei coragem e pedi a sua mão em casamento e ela disse que sim, com um enorme sorriso na face e os olhos a brilhar. Mais tarde, os seus pais deram a sua permissão e a sua bênção ao nosso casamento.

Passaram-se quatro meses de muito trabalho e dedicação para que tudo fosse perfeito no dia do nosso casamento. Finalmente, chegou o grande dia! Eu estava pronto para ir para a igreja e a limousine já estava à minha espera. A igreja estava deslumbrante, mesmo ao gosto de Maria Eugénia, os bancos tinham rosas brancas e fitas em volta, a passadeira estava coberta de pétalas de rosas, a igreja estava cheia, e os nossos convidados estavam todos vestidos a rigor. Dirigi-me ao altar, estava nervoso. Instantes depois, começou a marcha nupcial e ela entrou de braço dado com o pai, parecia um anjo, estava vestida de branco com um véu que lhe cobria a cabeça e dava brilho àquela igreja. Veio até mim com um esplendoroso sorriso no rosto, nunca antes a vira sorrir assim. Seguiram-se os votos do matrimónio e assim foi, "na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, até que a morte nos separe".

Com o apoio da minha mulher, levantei uma das maiores casas de apostas do país, a Casa da Sorte, e assim consegui construir a casa de sonho da minha mulher. Aquela casa que seria para sempre lembrada como a Casa Nogueira da Silva. Maria Eugénia fazia questão de que, em nossa casa, houvesse um grande e belo salão inspirado na casa de António Salazar, aquele que foi o espaço onde toda a nossa história havia começado. Eu apenas desejava ter um bonito e acolhedor jardim como forma de lembrar a Casa Rolão, sítio onde passamos muitas das nossas tardes a falar e a sonhar com o que seria o nosso futuro e a planear o dia mais feliz das nossas vidas. E assim se construiu a nossa casa de sonho, uma casa com muita história mas, acima de tudo, uma casa que foi testemunha de muitos dias de muito amor e felicidade.


A página rasgada

Ana Maria Sá
Gabriela Gomes
João Sousa


Num dia primaveril, uma senhora e a sua filha entram na livraria "Centésima Página", também conhecida como "Casa Rolão", na Avenida Central, em Braga. É um belo edifício da primeira metade do século XVIII que a família Rolão, que se dedicava ao fabrico de sedas, encomendou ao arquiteto André Soares. Na fachada imponente, destacam-se quatro portas no piso térreo e quatro janelas de sacada no piso superior, com cantarias lavradas, em estilo rococó. A mãe e a filha entram de mão dada mas, quando a criança se apercebe que se encontra num local repleto de livros divididos em secções ao qual chamam livraria, a sua expressão facial muda drasticamente, perdendo a expressão de felicidade por passear com a mãe para manifestar aborrecimento e desilusão com o que via.

A mãe, interessada num livro que já tinha captado a sua atenção, diz à filha que se dirija à secção infantil para ver se gostaria de algum livro. Pelo caminho, a menina repara num livro com uma capa e lombada dourada que lhe suscita curiosidade; retirou-o da prateleira e começou a ler. O livro contava um romance, no século XVIII, entre dois jovens bracarenses: Maria Leonor e Tomás de Sousa.

"Em pleno verão de 1761, Maria Leonor, de família nobre, passeia com a mãe pela cidade de Braga e, de repente, cruza-se com um rapaz de pele morena, olhos profundos, castanho escuros e bem vestido. A troca de olhares revelou, de imediato, empatia e carinho, ao ponto de sorrirem um para o outro.

Leonor, uma rapariga loira com cabelo fortemente ondeado, olhos verdes, tom de pele dourado, aparência delicada e suave, era de uma família de destaque e de grande importância na sociedade. A sua família, conhecida pelo apelido "Bertiandos", tinha construído uma nova casa no século XVII que vinha sendo modificada ao longo do tempo. Era uma casa apalaçada com inúmeras e luxuosas divisões e com um jardim tão vasto que os olhos humanos não o alcançam por completo. Os pais de Leonor decidiram "inaugurar" as mais recentes modificações, convidando as famílias mais prestigiadas da cidade de Braga para um baile. A família preparou e enviou os convites.

Chegado o dia da inauguração, Leonor estava expectante com a possibilidade de, porventura, poder voltar a ver aquele rapaz que lhe despertara interesse e que, de certa forma, a atraíra. Pela sua aparência, devia pertencer a alguma família abastada de Braga e talvez estivesse na lista de convidados.

Durante a receção, os dois jovens chocam um com o outro. Tomás, com receio de a perder de novo, não desperdiça a oportunidade para a conhecer. Tentam arranjar assunto para conversarem, mas acabam por se atrapalhar num misto de vergonha e extrema timidez. Discretamente, como se tivessem combinado, ambos se dirigiram para um recanto do jardim, rodeado de camélias e com uma pequena fonte ao centro, para poderem estar mais à vontade. Mas, mal tinham começado a conversa, ouviram um barulho como se fosse um trovão..."

Em pleno século XXI

Sentada no chão da 100ª Página, a menina não estava muito contente com o rumo da história pois não passava de mais um clichê, cujo final era previsível. Com aborrecimento, e devido à sua reduzida idade, sem pensar e num impulso, arranca a página que dava continuidade à história e, ouvindo passos, guarda rapidamente o livro ficando com a página na mão. Nesse preciso momento, a mãe apareceu junto dela e disse-lhe que iam embora; num sobressalto, a menina agarra no primeiro livro que encontra e coloca lá dentro a página rasgada. De seguida, foi-se embora com a mãe sem se preocupar muito com o que acabara de fazer.

Entretanto com Tomás e Leonor...

De repente tudo muda. Na casa dos "Bertiandos", que viria a ficar conhecida como "Palácio dos Biscainhos", o jardim magnífico em que se encontravam Leonor e Tomás já não existia; o imenso calor de verão que se fazia sentir, era agora um dia fresco de primavera. As alterações do espaço eram evidentes: agora estavam num jardim mas completamente diferente, junto de uma espécie de pequena fonte. Apercebendo-se que algo se tinha passado, os dois jovens olham um para o outro como se tentassem encontrar a resposta ou explicação para o sucedido; estavam apreensivos, no entanto felizes por se encontrarem juntos.

- Mas ...o...o que aconteceu? - Perguntou Tomás.

- Onde estamos? - Questionou Leonor.

Como vamos sair daqui? - Disseram, em simultâneo, Tomás e Leonor.

Incrédulos, olharam em seu redor, e, numa tentativa de perceber onde estavam, iam descrevendo o que viam para ver se algum deles reconhecia o local.

- Atrás de nós está um jardim com uma diversidade plantas diferente do grande jardim dos Biscaínhos. A parte da frente da casa é bonita, revestida com típicos azulejos portugueses e uma varanda com características parecidas com as nossas casas. Para além disso, o jardim tem uma esplanada agradável, fresca, convidativa à leitura ou a convívios.

Decidiram entrar na casa cautelosamente, ao encontro do desconhecido. Ficaram perplexos com a quantidade e diversidade de livros que se encontravam nas prateleiras. O entusiasmo era tal, que decidiram folhear atentamente alguns livros. Como eram diferentes dos livros a que estavam habituados! - a textura da folha, o relevo, o tipo de letra... A funcionária, apercebendo-se de movimento (tendo em conta que não os viu entrar) e estranhando o jovem casal devido aos seus trajes e penteados insólitos, dirige-se aos dois dizendo:

- Precisam de alguma coisa? - perguntou com um tom um pouco rude.

Tomás, apercebendo-se do receio da companheira, segura firmemente a sua mão num gesto de proteção e encorajamento.

Retraídos, perguntaram:

- Onde estamos?

- Na "Centésima Página" ou "Casa Rolão", em Braga, ... - disse a funcionária, atenta às reações de ambos.

Leonor e Tomás olham um para o outro aliviados por estarem na mesma cidade, tendo em conta que poderiam estar num sítio mais longínquo. Hesitantes, perguntam:

- Pode dizer-nos a data de hoje? Em que ano estamos?

Com um tom desconfiado, e de certa forma admirada, a funcionária respondeu:

- 11 de maio de 2018.

Eles não esperavam ouvir aquela data, mas sim trezentos anos antes. Instala-se um silêncio hesitante entre os dois.

Entretanto, na rua, ao fazer o percurso até casa, a mãe da criança ia a refletir no livro que hesitou em comprar. Arrependida por não o ter feito, volta para trás com a filha para o adquirir.

De regresso à 100ª Página, a menina repara na figura e nas características "invulgares" de Leonor e Tomás. Não os reconhecendo de imediato, estranha o vestuário e associa, com alguma dúvida, as suas semelhanças às personagens do livro que anteriormente estivera a ler. Para ter a certeza das suas suspeitas, vai buscar o livro e volta a ler a passagem onde se descreve a aparência dos personagens. Extremamente chocada com a situação, vai falar com o jovem casal.

- Como se chamam? De onde vêm?

- Eu sou o Tomás, esta é a Leonor e vimos da Casa dos Biscainhos.

- Ah, vocês pertencem à minha história!

As duas personagens do romance, muito confusas e surpreendidas, perguntam:

- Qual história?! Mostra-nos!

A rapariga corre imediatamente para a estante e conta o que se passou, mostrando também a página rasgada. Eles perguntam o porquê de a ter rasgado e ela explica resumidamente:

- Pensava que era mais um romance "cor-de-rosa" característico e que, como todos os outros, iria acabar com a frase "E viveram felizes para sempre...". Sendo assim, não valeria a pena estar a lê-lo!...

Surpreendidos com o que acabaram de ouvir, Tomás e Leonor decidem reconstruir a história, tendo ainda uma leve esperança de que tudo pudesse voltar ao normal. Como era vontade de todos recolocar a história no seu devido lugar, principalmente para resolver, ou pelo menos minimizar, os estragos que aquele rasgar de página tinha provocado, procuram os três com afinco a misteriosa página.

Para ganhar mais tempo, a criança, propõe à mãe que lanche na cafetaria da 100ª Página ou então no jardim das traseiras; a mãe optou pela cafetaria e aproveitou para iniciar a leitura do livro.

A menina retoma a busca pela página, e depois de uma longa procura, quando a esperança já era escassa e quando já tinham sido vistos todos os livros da livraria, com a exceção de um, "O romance na Casa dos Biscaínhos", a menina desesperada, vai, numa última tentativa ver se a folha lá está. Quando vê que a página se encontra no livro, dá um grito de alegria. Tomás e Leonor correm para junto dela. Afinal de contas, a criança, devido ao susto e ao medo que a mãe lhe tinha provocado, acabou inadvertidamente por deixar a página no mesmo livro donde tinha sido rasgada. Juntos, os três tentam colar a página. Foi necessária muita precisão, minúcia e fita-cola para a colocar no seu devido lugar, de onde, aliás, nunca deveria ter saído.

Terminada a colagem, Tomás e Leonor, desolados e com permanentes incógnitas sobre a maneira como iriam sobreviver num mundo novo, vão andando pelo jardim para refletir e sentam-se junto à fonte. Maria Leonor, finalmente, ganha coragem e, apesar de muito hesitar, fixando os seus olhos verdes nos olhos castanhos de Tomás de Sousa, consegue confessar-lhe os seus sentimentos por ele. Mostrando o que lhe ia na alma, o rapaz acaricia de forma suave e deleitosa o rosto dela e num impulso, realiza o tão esperado desejo de a beijar. Repentinamente, uma súbita força, como se de um tornado se tratasse, sugou as duas personagens de volta para a história, regressando ao jardim da Casa dos Biscainhos, onde fora interrompido aquele que seria o início da história de amor de ambos. O amor e a união entre eles eram tão fortes que nem deram conta que voltaram ao jardim onde tudo começou.

A menina, essa, ficou com tanta curiosidade para saber o final da história que acabou por terminar a leitura do livro, ali mesmo, sentada no chão da 100ª Página. Os dois jovens ganharam mais proximidade devido à aventura que viveram, tornando assim a sua história de amor num conto tradicional que, tal como a menina previra, também acaba com a frase: "E viveram felizes para sempre!".

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