Correaria Moderna

"OLHAR BRAGA" - Património local e escrita criativa

Estes trabalhos, integrados nas Jornadas Europeias do Património 2018 - "Partilhar Memórias", em parceria com a Câmara Municipal de Braga, encontram-se editados em Brochuras.

A empatia

Daniel Horta
Diogo Pires 
Diogo Duarte

Era um dia especial para Carlos, talvez ele próprio não soubesse o quão especial esse dia viria a ser, muito menos que viesse a tornar-se o dia mais importante da sua vida.

Era o dia da corrida de cavalos, a mesma corrida a que o seu pai havia assistido com sua idade.

Carlos herdara do seu pai a paixão por cavalos, um homem de sucesso, que em toda a sua vida havia amado a arte equestre e, como consequência, havia sido o dono da maior loja de correaria da cidade.

Infelizmente, o pai de Carlos falecera quando este era ainda muito novo, obrigando a um fecho temporário da loja.

A mãe de Carlos, muito carinhosa e trabalhadora, fazia tudo o que estava ao seu alcance para esboçar sempre um sorriso ao seu bem mais precioso. Ela sabia que, assim como seu marido, o filho adorava os fortes animais de cascos resistentes. Carlos sempre pedia à mãe para ir ver a corrida de cavalos que decorria mensalmente, em Braga, na sua cidade. A mãe trabalhava dia e noite para que o filho tivesse sempre comida na mesa, crescesse saudável e forte, mas o dinheiro não chegava para coisas "supérfluas" ... Um dia apercebendo-se do olhar cada vez mais triste do filho, decidiu-se: trabalhou arduamente dia e noite e, já exausta, comprou com as poupanças que havia conseguido, um bilhete para a corrida de cavalos pela qual o filho tanto ansiava.
O dia chegara. Carlos vestiu o seu melhor traje e com o coração aos saltos, encontrou-se no recinto das corridas como tantas vezes tinha imaginado.
Eram múltiplos os sentimentos que experienciava. Carlos observou calmamente todas as atividades que decorreram, apreciou todos os pormenores ligados à cavalaria, inclusive as corridas onde participaram os mais nobres cavalos da região.

Tudo deliciava Carlos; finalmente, a admiração que sentia por aqueles animais ia ser saciada. Foi também nesse momento que Carlos se apercebeu de que a arte equestre marcaria o seu destino, e que queria intensamente reabrir a loja do seu querido pai. Tudo parecia encaixar na perfeição.

Carlos estava satisfeito por descobrir a sua verdadeira paixão e o seu rumo. Entretanto, avistou uma rapariga cuja imagem rapidamente fixou mentalmente. Era o tipo que idealizava e aparentava cumprir todos os requisitos que ele procurava.

Por momentos, Carlos voltou a sentir-se perdido. Esquecendo por breves instantes os cavalos, deixou-se arrebatar pelo seu novo interesse.
Rapidamente, chegou perto da menina que se colocara na bancada oposta à de Carlos. De face corada de emoção, resolveu-se a dirigir a palavra à jovem que estava debruçada sobre as grades que separavam a tribuna do organizador da corrida. Até os olhos lhe fugiam. Ao lado dela, encontrava-se um senhor, provavelmente seu pai, equipado a rigor para a situação. Sem grandes demoras, Carlos imaginou um diálogo e dirigiu-lhe então a palavra. Inicialmente, a rapariga expressou um olhar atrapalhado, envergonhado, mas rapidamente lhe respondeu e estabeleceu uma conversa com o nosso jovem cavalheiro. Conversaram algum tempo e Carlos rapidamente percebeu que tinha mais em comum com "a sua amada" do que os meros olhares iniciais.

Desde o início da conversa, que o coração de Carlos ouvia atentamente as suas palavras. Era como estivesse a viver uma história de amor daquelas bastante lamechas, em que o rapaz se apaixona à primeira vista pela menina.

Com todos estes acontecimentos, o sonho de reabilitar a velha loja de correaria do seu pai tinha ficado um pouco esquecido na sua mente - Carlos tinha agora um novo motivo para ser feliz.

As conversas tomavam proporções que tanto Carlos como a jovem não achavam sequer ser possível. Nessa altura, já ambos sabiam que eram feitos um para o outro. A evolução da sua relação de amizade ao longo do tempo foi aumentando: ambos partilhavam os mesmos gostos e os mesmos desejos. Tudo parecia promissor. Era algo único, seria uma das primeiras vezes que o amor pelos cavalos conseguira juntar duas pessoas.

Carlos, que desde cedo tinha tido a vida muito dificultada, sentia-se finalmente feliz e realizado, porém faltava algo mais, algo para conseguir alcançar toda a felicidade com que sempre sonhara. Algo que lhe eriçava de emoção os cabelos encaracolados.

Nessa mesma noite, Carlos pensou e pensou. "Dialogara" a noite inteira com o retrato do seu falecido pai, que mantinha em cima da sua mesinha de cabeceira, desde sua morte.

No dia seguinte, com as forças que lhe restavam, que não eram muitas, pois acabara de se libertar de uma aula de Português, onde estudara Os Lusíadas, Carlos encontrou-se com a sua amada, como era já habitual. Dominado por um turbilhão de sentimentos, finalmente, ganhou coragem e, de joelhos, fez a declaração em alta voz: "Eu amo-te e sempre te amarei!". Sem perder tempo, Carlos partilhou todos os seus sonhos e ambições e, pela milionésima vez, contou-lhe a história da loja que o seu pai havia tido em tempos. Porém, desta vez, com um objetivo diferente. Carlos propôs à sua amada que juntos reerguessem o negócio de família, uma vez que ambos adoravam cavalos, e esses animais significavam tanto para eles. Após um longo discurso que a sua ouvinte escutara atentamente, as lágrimas correram pela face dela e, sem demora, aceitou o novo desafio sorrindo e contemplando o amor da sua vida.

A Correaria Moderna que tinha sido fundada pelo seu pai, viria a erguer-se novamente alguns anos depois, melhor e mais forte, desta vez, sob o comando de Carlos e da sua mulher.

O negócio expandiu, integrando agora novas realidades, favorecendo tanto os que ousavam praticar o desporto relacionado aos nobres animais de cascos duros, até àqueles que simplesmente passavam na loja para comprar uma carteira ou uma mala de couro autêntico, de elevada qualidade.

Novos projetos, novos produtos surgiram desde a fabricação de material equestre, bolas de futebol e acessórios diversificados. Todo e qualquer desejo do cliente, Carlos e sua mulher realizam com dedicação e profissionalismo. Com o passar do tempo, como se por pura magia, um menino pequeno, mas com grandes ambições, transformou a loja antiga de seu pai naquela que hoje conhecemos como a Correaria Moderna, mais conhecida pela loja do Cavalinho Branco.


Braga, cidade com história e amor

Ana Rita Duarte
Diana Silva 
Mafalda Barbosa


No mês de junho de 1965, uma jovem, de nome Amélia, de olhos verdes, cabelos loiros e bastante elegante, decidiu, com os seus amigos, ir conhecer as festas populares do S. João, em Braga. Desta forma, poderiam, além de aproveitar para conhecer os festejos em honra do santo, matar as saudades dos amigos que tinham de Braga e que já não viam há bastante tempo.

No dia de S. João, o grupo rumou à "cidade dos arcebispos", onde se encontrou com os amigos bracarenses, entre os quais Hélder, um rapaz encantador e bem constituído. Como tinha passado muito tempo desde o último encontro, Hélder apercebeu-se de que Amélia estava diferente, mais bonita e mais interessante pelo que passou a noite sempre ao seu lado. Acabada a festa, Amélia e os amigos que a tinham acompanhado regressaram a Castelo Branco, confessando que tinham gostado muito da cidade e que iriam voltar logo que possível.

O tempo ia passando, mas Hélder não esquecia Amélia, o seu interesse por ela não diminuía, antes pelo contrário. Sentia necessidade de lhe falar, de comunicar com ela e, tomando coragem, enviou-lhe uma carta onde exprimia os seus sentimentos e a convidava a voltar a Braga para que ele pudesse mostrar-lhe melhor a cidade.

O primeiro impulso de Amélia foi aceitar o convite, porém não o pôde fazer por causa das aulas que já tinham começado. No entanto, os dois jovens foram comunicando e, mal ela acabou o secundário, deslocou-se a Braga, considerando que, para além de ficar a conhecer alguns pontos de interesse, também poderia ver se lhe agradaria fazer os seus estudos superiores na Universidade do Minho.

Hélder esperava ansiosamente a chegada de Amélia, pois ainda não conseguia acreditar que iria poder passar alguns dias com a rapariga dos seus sonhos. Quando a foi buscar à estação de comboios, estava muito nervoso, questionando-se "Será que ela vai gostar de mim, como eu gosto dela?"

Começaram a fazer a visita à cidade, no dia seguinte. O primeiro local escolhido por Hélder foi a Correaria Moderna. Resumidamente, contou a história daquela loja: fora criada há cerca de 140 anos e, inicialmente, apenas fabricava bolas para todos os clubes de futebol nacionais. Entretanto, a loja foi-se especializando em material de equitação e de marroquinaria. Enquanto falava, Hélder mostrava a Amélia vários produtos, desde roupa para equitação, selas próprias para a tourada à portuguesa, selins, material de caça e ainda a oficina onde tudo isto era produzido. Amélia ficou encantada ao ver as máquinas antigas que ainda estão a ser usadas, pois os proprietários gostam de manter a tradição no processo de manufaturação dos seus artigos e negam-se a ser absorvidos pela globalização que torna os produtos todos iguais e sem identidade própria.

Continuando o passeio pela velha Bracara Augusta, dirigiram-se ao Museu Nogueira da Silva onde Hélder contou a história de amor dos seus pais, afirmando que tinha sido naqueles jardins que ambos se tinham conhecido durante uma visita de estudo das escolas que frequentavam. Como Amélia adorou o jardim, o rapaz decidiu levá-la a conhecer o Museu dos Biscainhos e o seu magnífico jardim. Embora tenha gostado de conhecer o interior daquele palácio barroco, a jovem ficou encantada com a diversidade de espécies vegetais do jardim. Como tinha um grande interesse pela área da biologia, decidiu "presentear" o seu companheiro com algum do seu conhecimento e falou-lhe, então do tulipeiro, originário da Virgínia, que deve o seu nome às suas flores em forma de tulipa, das japoneiras que, como o nome indica, são originárias do Japão, das magnólias de flores grandes e exuberantes .... Hélder estava cada vez mais fascinado por Amélia.

Como a fome já apertava, ele decidiu que o lanche seria nas Frigideiras do Cantinho, um café fundado em 1796 e que é o estabelecimento de restauração mais antigo da cidade. A casa é conhecida pelas suas famosas frigideiras, uma empada de carne e massa folhada cuja receita centenária passa de geração em geração mas não é divulgada ao público. Ambos confirmaram a justiça da fama de que este petisco goza. Sabendo da história da casa, depois do lanche, Hélder pediu ao dono do café que lhes mostrasse melhor o local. Então, puderam visitar as ruínas, que são visíveis através do vidro que reveste o chão, mesmo por baixo da área onde os clientes são servidos e que são importantes achados arqueológicos da época romana (séc. II e III) quando Braga era conhecida por Bracara Augusta. Ouviram da boca do proprietário toda a história do edifício.

Tinha sido um dia fantástico e Amélia estava grata a Hélder por ter sido o seu cicerone na cidade. No entanto, este era apenas um dos muitos dias que iriam passar juntos. Hoje, decorridos já sete anos, continuam juntos e a pensar em casamento que gostariam de realizar no belo jardim do Museu dos Biscainhos.

O que seria dos museus, dos jardins e até das casas de comércio tradicional se não existissem olhos curiosos e amantes da História?


ASAS E RAÍZES

João Peixoto


Francisco vivia numa VW Kombi. Desde jovem que tinha o sonho de se aventurar pelos diversos países e culturas. O mundo era coisinha pouca para ele e já conhecia muitos países. Francisco amava acordar, poder fazer o seu exercício físico ao ar livre enquanto arrumava os seus pensamentos ensonados e, mais a noitinha, sentar-se, num banco de madeira, acender umas canhotas, e pumba! Guitarra ao colo, garganta pronta a rasgar e, claro, a boa companhia de um charuto cubano e de um whisky irlandês.
Francisco era um músico conhecido pela sua versatilidade: já tinha composto desde metal, a jazz, a blues, a gipsy jazz sendo algumas das suas inspirações Louis Armstrong, Frank Sinatra, Django Reindhart, Cab Calloway,Buddy Guy,... nada o "babava" mais do que pegar na sua guitarra elétrica e começar a criar energia e partilhá-la com quem o ouvisse.

Numa tarde do ano de 1986, preso dentro da Kombi devido ao mau tempo, lia o livro "The brothers Karamazov" e desviou o olhar para um mapa que estava preso num quadro de cortiça onde as muitas agulhas espalhadas pelo mapa inteiro asinalavam os países visitados. Pensou que nunca tinha ido a Portugal e logo que pôde, guiado pela enorme vontade de conhecer o mundo, dirigiu-se a Portugal.
Depois de algumas semanas a atravessar a Europa, finalmente assentou os pés em terra portuguesa, especificamente Lisboa, e decidiu cantar na rua como sempre fazia. Retirou a sua guitarra Gibson Firebird da Kombi, pousou a pedalboard, ligou o amplificador e o microfone e, depois de alguns minutos a cantar, deparou-se com um cenário muito diferente daquele a que já estava acostumado: ninguém prestava atenção ou parava para o ouvir. Intrigado, pensando que poderia ser da música, resolveu tocar "Sultans of Swing ", dos Dire Straits", e deparou-se com a mesma cena. Desmotivado e um pouco desiludido, voltou para a sua KW para descansar e pensou "Talvez seja da hora, afinal de contas são 18h... já estão cansados" e decidiu na próxima manhã tentar outra vez. A situação repetiu-se e voltou a repetir-se, e outra vez, não resultou. Desapontado com Lisboa, tomou rumo para Braga, achando que lá iria ter mais sorte.
Estacionando a sua casa ambulante, retomou o ritual de retirar o material musical e desta vez decidiu tocar "Immigrant Song", de Led Zeppelin" e, logo uma enorme multidão se formou à sua volta e, algures na multidão estava Carlos, um grande fã de Francisco e um mestre na arte da Correaria. Após o mini concerto e já com as palmas das mãos bastantes vermelhas e dormentes de tanto aplaudir, Carlos, emocionado, foi ter com Francisco, contando-lhe entusiasmadamente sobre a sua coleção de CD's de TODOS os álbuns de Francisco, desde edições limitadas, a edições raras, e a CD's de diamante. Como a conversa fluía como se já se conhecessem de longa data e achando a situação oportuna, Carlos perguntou a Francisco se ele gostaria de ir jantar a sua casa. Já se fazia bastante tarde e, por isso, Francisco aceitou. Voltou à Kombi, para tomar um banho e vestiu algo mais formal para ir jantar a casa de Carlos. Francisco nunca fazia este tipo de coisas, mas como estava bastante feliz com a multidão que o aplaudiu, sobretudo depois do que acontecera em Lisboa e porque achou Carlos um homem de confiança e, acima de tudo, era um grande fã seu o que já não acontecia desde que tinha parado de fazer turnées, decidiu deixar a bola rolar.
Dirigiu-se para a casa de Carlos, que se situava na Rua do Chãos e que, curiosamente, tinha uma loja chamada "Correaria Moderna" no andar de baixo, e deparou-se com algo que nunca vira: no passeio, um cavalo bastante grande, branco, engraçado e já a acusar uma longa existência, fazia publicidade mesmo à porta da loja. Tocou à campainha que parecia ser partilhada com a da loja e acendeu-se uma luz ao fundo da loja. Carlos apareceu com um grande sorriso, como as crianças quando vão ao parque, oferecendo-lhe a melhor hospitalidade possível. Sentando-se à mesa com a família de Carlos, Francisco questionou-o sobre a sua vida, "O que fazia? Como vivera a sua vida? Qual a sua profissão?...". Carlos desatou a contar sobre seu pai, um senhor amante de cavalos que, sentindo a necessidade de uma loja perto para comprar equipamento diversificado de equitação, decidiu abrir uma loja no andar de baixo de sua casa. Carlos crescera a ver o pai a trabalhar na oficina, rapidamente lhe ganhou o jeito e, em menos de nada, estava lado a lado com o pai a confecionar selas, botas, coletes, carroças,... O negócio foi crescendo, pois naquela altura a procura de material de equitação era bastante alta, a quantidade de pessoas a trabalhar na loja também foi aumentando, chegando a ter 40 pessoas a trabalhar diariamente na oficina. Infelizmente, passados alguns anos, o pai de Carlos foi enfraquecendo e ficando debilitado para o ajudar na loja pelo que Carlos passou a ser o gerente da maior loja de correaria de Portugal. Alguns anos depois, o pai faleceu, deixando o património todo ao seu filho mais velho, Carlos.
Carlos explicou a Francisco que a sua vida tinha sido toda vivida naquela loja e que para ele, a loja era a sua vida. Lá conhecera a sua maravilhosa esposa, Deolinda Palitinho, e fora lá que, da mesma forma como seu pai fizera com ele, criara os seus filhos. Francisco estava fascinado com o que acabava de ouvir e deu consigo a refletir sobre a diversidade daquilo que nos faz felizes. Ele e Carlos partilhavam as mesmas preferências musicais, mas, enquanto ele, Francisco, não conseguia ficar muito tempo num mesmo sítio e sentia a ânsia da aventura, de correr atrás do desconhecido, Carlos sentia prazer em dar continuidade à tradição. Um sentia o apelo das asas, outro o apelo das raízes, mas ambos eram felizes com a opção que tinham tomado para as suas vidas. E o facto é que o mundo precisa de ambos.

Elogiando o maravilhoso cozido à portuguesa de Deolinda e apertando a mão firmemente a Carlos, Francisco desejou um resto de boa noite e seguiu para a sua Kombi onde ficou a descansar o resto da noite. No dia seguinte, preso dentro da Kombi devido ao mau tempo, lia o livro "The brothers Karamazov" ", desviou o olhar para um mapa que estava preso num quadro de cortiça e, apesar de ter muitas agulhas espalhadas pelo mapa inteiro a indicar os países que já visitara, lá estava mais um onde ele nunca tinha ido: a Islândia.


A Homenagem

António Gabriel
 Ricardo Cristo 
Simão Mateus

Uma semana havia passado desde que Nogueira da Silva ficara viúvo. O falecimento da sua mulher, Maria Eugénia, deixara-o desolado, sem saber que rumo tomar; tentava de tudo para se abstrair da morte da sua adorada esposa, mas estava inconsolável, apenas queria ficar sozinho, com os seus pensamentos. O tempo passava e, como não havia alteração, os amigos insistiam em levá-lo a festas para o tentar animar. Para além disso, a viuvez de um cavalheiro tão distinto e de tão boa posição social despertava a atenção de várias senhoras "casadoiras" que lhe escreviam cartas, propondo-se a ajudá-lo a combater a solidão. Estas cartas não tinham o efeito pretendido, pois ele era muito religioso e não se perdoaria se alguma vez "traísse" a sua falecida esposa que ainda ocupava todo o espaço do seu coração.

Meses e meses passaram e Nogueira da Silva continuava muito abatido, precisava de companhia, mas os seus pensamentos remetiam-no sempre a tempos passados, tempos felizes. Tinha a consciência que não poderia arriscar-se a sofrer outro desgosto amoroso, descartando assim qualquer hipótese de um novo relacionamento. Precisava de uma ocupação, um novo passatempo, "- Mas o que poderia arranjar para se distrair?" - perguntou aos seus criados. O primeiro criado afirmou que ele deveria adotar um cão. "- Humm, não acho que seja uma boa ideia, porque dois dos meus funcionários são alérgicos a cães e não os quero substituir."-refutou Nogueira da Silva. "- Talvez o senhor possa considerar um outro animal ... um coelho é muito fácil de cuidar e é muito dócil.". "- De facto não é uma má ideia, no entanto acho que o coelho fugiria muito facilmente ...". Um criado que o acompanhara desde infância disse-lhe : "- Na sua juventude, o senhor costumava gostar tanto de cavalos, passava o dia todo a cavalgar, a estudá-los e a fazer desenhos deles, talvez não fosse má ideia adquirir um cavalo ...". "- Excelente ideia! De facto, sempre apreciei cavalos, eles podem servir de companhia e talvez até me distraía um pouco do meu desgosto. Mas onde poderei obter um cavalo?". "- Há uma loja cá em Braga, a Correaria Moderna, que é uma das mais conhecidas a nível de cavalos e considerada por muitos como a melhor do país. Gostaria de marcar uma reunião com os proprietários? -perguntou o criado. "- Conhece os proprietários do estabelecimento?!" "Sim, são pessoas distintas e de um trato fora do comum; são, sem dúvida, boas pessoas. Sei isto porque eles são bastante amigos dos meus pais e em tempos de revolta e de desespero foram eles que nos acolheram e cuidaram de nós.". "-Parecem pessoas de grande carisma, definitivamente muito nobres; agora, estou ainda mais interessado em comprar este tal cavalo!"

Três dias depois, Nogueira da Silva encontrou-se com os proprietários da Correaria. Após uma longa conversa, indicaram-lhe um criador de cavalos, era dinamarquês e tinha grande fama pelos excelentes cavalos que criava, o que despertou imensa atenção a Nogueira da Silva. Depois de uma longa deliberação, decidiu aceitar a proposta e comprar um cavalo ao referido criador. Como há muito tempo não acontecia, estava entusiasmado e ansioso por receber o cavalo e voltar a praticar equitação.

Algum tempo depois, a Correaria Moderna enviou-lhe uma carta, informando que o seu cavalo já chegara. Esta notícia, como esperado, deixou Nogueira da Silva numa grande expectativa pelo que, nesse mesmo dia, decidiu encontrar-se com os proprietários da Correaria que estavam sempre disponíveis para ele.

Quando chegou ao local, deparou-se com um belo e altivo cavalo à porta da loja. Correu até ele e afagou-o; era branco como a neve, o pelo era macio e já tinha o selim colocado. Os proprietários da Correaria saíram da loja e vieram cumprimentá-lo. Nogueira da Silva voltou para casa extremamente satisfeito com a sua nova aquisição.

Estava tão satisfeito com o serviço prestado pela Correaria que decidiu ir lá no dia seguinte e manifestar a sua gratidão, convidando os donos para uma festa privada no jardim de sua casa, convite que foi aceite com todo o agrado.

Durante a festa, conversaram bastante sobre cavalos e, como a conversa fluía naturalmente, os proprietários da Correaria Moderna convidaram-no a participar na mais famosa corrida de cavalos do país, dizendo que se encarregavam de o treinar e ao cavalo para esta prova. A prova realizava-se no dia 6 agosto, por volta das 11:35, ou seja, estavam a cerca de um mês da festa. Nogueira da Silva aceitou o convite de forma entusiástica e, nos dias que se seguiram, cumpriu um plano de treino bastante intenso que o levaria, a si e ao seu cavalo, a um extremo cansaço, mas que estreitou os laços entre ambos.

Chegou o dia da corrida, o momento para o qual todas estas ações convergiam, o momento da verdade. Foi uma corrida empolgante e renhida até ao fim, mas Nogueira da Silva conseguiu vencer, doando todo o dinheiro do prémio à Correaria Moderna como forma de gratidão.

Passaram-se os anos e Nogueira da Silva, que manteve sempre relações próximas com os donos da Correaria Moderna, adoeceu, tinha uma doença raríssima e sem cura. Sabia que ia morrer e, como não tinha filhos, decidiu doar a casa, onde vivera com Maria Eugénia, à Universidade do Minho, que acabara de ser criada, e a Casa da Sorte, que ele fundara, doou-a aos funcionários. Às pessoas que nunca o abandonaram, que sempre estiveram presentes e lhe manifestaram a sua amizade, os donos da Correaria Moderna, deixou parte da sua fortuna.

Faz hoje um ano que Nogueira da Silva faleceu. O dia da sua morte ficará para sempre como um dia negro da história de Braga e de Portugal, e como homenagem nós, atuais donos da Correaria Moderna, colocamos, todos os dias, na frente da nossa loja, um cavalo branco, igual ao que foi comprado por Nogueira da Silva.

 

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