Fonte do Ídolo

"OLHAR BRAGA" - Património local e escrita criativa
Estes trabalhos, integrados nas Jornadas Europeias do Património 2018 - "Partilhar Memórias", em parceria com a Câmara Municipal de Braga, encontram-se editados em Brochuras.
Fonte do Ídolo
Pecados de Amor
O dia tinha amanhecido de forma estranha. Desde as dez da manhã, umas nuvens mais negras que a cor do carvão fecharam os céus e esconderam completamente o sol. Parecia que tinha anoitecido em poucos minutos, o vento batia nas janelas, como se o deus Éolo, o deus dos ventos, estivesse zangado comigo e quisesse descarregar toda a sua fúria em mim. O vento produzia um uivo assustador e parecia durar horas e, do nada, uma chuva intensa começa a cair, criando um ritmo barulhento. Um roncar longínquo parecia aproximar-se e, como a cereja no topo de bolo, uma trovoada tempestuosa chegou, criando um espetáculo de luz tanto aterrador como arrebatador. Agora que penso nisso, acho que, no fundo, eu já sabia que aquilo era o sinal de um mau presságio, de que algo trágico iria acontecer.
Saí de perto da janela. Estava trancada naquele quarto há horas, desde que fui apanhada pelos capangas do meu pai, fora de casa, durante a noite. Não entrava nenhuma alma naquele quarto, nem uma simples criada. Então, estava há horas sem comer e sem trocar de roupa.
Por volta das onze, o mordomo entrou no quarto e avisou-me de que o meu pai queria ver-me e, então, conduziu-me até ao escritório, como se eu já não tivesse feito esse mesmo percurso um número infinito de vezes.
Entrei no escritório e o senhor Cordovil, o meu pai, já me esperava. Encontrava-se com a cabeça enterrada em papelada, como sempre, nem levantou o olhar e fez um gesto com a mão para eu me sentar. Fiquei parada durante alguns minutos até que, de repente, o meu pai perguntou-me:
— Diga-me, como correu a sua estadia na casa de campo? Recuperou do seu mal-estar?
— Sim, senhor.
O meu pai desviou os olhos dos papéis, olhando para mim.
— Porque é que a menina foi apanhada a entregar uma criança, na roda dos expostos, no Convento das Convertidas? - o tom do meu pai era sério - Responde-me. Era seu filho?
Limitei-me a baixar a cabeça, não tinha coragem de olhar nos olhos do meu pai e ver a sua cara de raiva ou deceção. Então, só abanei a cabeça afirmativamente.
Fez-se um silêncio, até que a voz do meu pai se fez ouvir:
— Era meu neto… não, ele ainda é meu neto!
Independentemente, eu não consegui nem consigo olhar para aquela criança como família, ela é só a amostra viva dos meus pecados e da traição que sofri. Notei, então, que fiz uma cara de desprezo e que o meu pai a tinha visto.
— Se vais ficar calada, pelo menos diz-me quem é o pai?
Lembrei-me da primeira vez que o vi.
Era uma tarde de primavera, eu passeava nos jardins do campo de Santa Anna, quando um cavalheiro me cumprimentou. Pediu-me a minha mão e beijou-lhe a face. De seguida, decidiu perguntar o meu nome sem hesitação. Fiquei especada a olhá-lo durante algum tempo, mas, por fim, disse-lhe que me chamava Eva Cordovil. Mostrou-me o seu sorriso encantador e afirmou que ficaria à espera de me voltar a ver, porém, desta vez, não consegui responder, apenas sorri e afastei-me.
Nos dias seguintes, a sua face não me saía da cabeça: os seus belos olhos claros como a cor do céu num dia de sol, as maçãs do seu rosto bem definidas, o seu cabelo curto loiro que brilhava ao sol. Eu só conseguia pensar no quão belo ele era, lembrei-me que lhe dissera o meu nome, mas que não lhe perguntei o seu.
Decorreram uns meses, desde o primeiro encontro com o homem misterioso, e já estávamos no início do verão e, como o aniversário do meu pai estava a chegar, fui com a minha aia à Queijaria Central para comprar o seu queijo favorito, a especialidade da queijaria, o queijo da Serra da Estrela. Quando saímos da queijaria, cruzei os olhos com um belo homem, demorei a reconhecê-lo, mas ele, quando me viu, sorriu e aproximou-se e cumprimentou-me. Desta vez, fui eu que lhe perguntei o seu nome e ele respondeu-me:
— O meu nome é Ricardo.
Para meu espanto, ele não tinha sobrenome, pois tratava-se de alguém com tanta etiqueta e tão bom físico. Tive, então, uma pontada de desapontamento, o que não lhe passou despercebido, mas voltou a sorrir e separamo-nos outra vez.
Pensei que nunca mais o veria, mas a fortuna tinha outra ideia para mim. Durante uma tarde, quando estava na Centésima Página à procura de um livro, olhei para o lado e reconheci-o instantaneamente. Quando me viu, mostrou-me logo aquele sorriso encantador, cumprimentou-me e perguntou que livro procurava, disse-lhe o título e, nem um segundo depois, entregou-mo. Mas, de repente, o Ricardo, tirou um papel do bolso e meteu-o no meio do meu livro. Mas, assim como nos encontrámos, tão rapidamente nos voltamos a separar.
Quando voltei para casa, corri para o meu quarto, ansiosa por ler o bilhete. Logo que me tranquei nos meus aposentos, tirei o papel de dentro do livro e abri-o como se fosse a coisa mais delicada que possuía e li a seguinte mensagem.
«Encontre-se comigo na Fonte do Ídolo
amanhã à tarde.»
E foi assim que começamos a encontrar-nos às escondidas de todos. No início, tentamos conhecer-nos e falávamos das coisas mais banais, de livros, da família, de gostos pessoais. Não consigo bem definir em que altura comecei a sentir algo mais do que amizade. Uma sensação de conforto e prazer preenchia-me sempre que estava com ele naquele sítio, que acabou por se tornar o nosso recanto, um lugar em que nada nem ninguém nos via ou julgava.
Pensar que… realmente, achei que o podia ter como meu, imaginava um futuro com ele, mesmo ele sendo da plebe. Podia arranjar um trabalho na mansão do meu pai, podíamos ficar juntos para sempre… Como eu fui ingénua!
Mas tudo mudou naquele fatídico dia. Eu tinha chegado mais cedo à fonte naquela tarde, ele já tinha chegado, mas não estava sozinho. Com ele, estavam mais dois rapazes, da mesma idade. Na altura, não pensei nada de mais. Que burra, que estúpida que fui!
Não lhes conseguia ver o rosto, pois estavam os dois de costas. Quando me aproximei, agarrei-lhe a mão, mas ele soltou-a de susto. Os dois rapazes olharam para mim admirados. Decidida em fazer boa figura perante os seus amigos, apresentei-me:
— Boa tarde, eu sou a Eva. Sou amiga do Ricardo.
Ricardo olhou para mim de uma maneira que nunca tinha visto.
— Ah! Ah! -riu-se de uma forma estranha para os rapazes- Eu nunca a vi na minha vida! Ela está enganada! Vão para o seminário, eu já vou ter convosco. Parece que tenho de ajudar esta jovem donzela, deve ter-me confundido com alguém.
Nesse momento, a minha cabeça ficou toda confusa, ele até podia ser tímido, mas dizer que não me conhece… e seminário? Ele era padre?!
Quando os dois rapazes foram embora, tão confusos como eu, começamos a discutir. Eu só queria saber que história era aquela do seminário. Ele, com uma cara indiferente, só dizia que eu não tinha o direito de dizer que éramos amigos em frente dos seus colegas. Subitamente, ele começou a ficar agressivo, agarrou-me pelo pescoço, empurrando-me contra a parede e, naquele momento, só me lembro dele a gritar, dizendo "É um amigo que queres, sua meretriz?". E começou a despir-me com toda a força e, como um animal, forçou-se dentro de mim.
Não me lembro de muito, só sei que chorei e gritei como nunca tinha feito. Implorei para que parasse, que tirasse a mão do meu pescoço. Tentei lutar, mas era em vão.
Quando ele terminou, não conseguia mexer nem a ponta dos dedos. Então, só o vi a arranjar-se, como se nada tivesse acontecido, e a partir, sem olhar para mim uma única vez.
Nesse dia, cheguei a casa já de noite e pensava que o pior já tinha passado. Era só esperar que tudo voltaria ao normal. Mas não foi assim. Quando comecei a ter enjoos, chamei um médico às escondidas do meu pai. O mesmo confirmou as minhas suspeitas, estava grávida. Depois de muito implorar, ele deu-me dois frascos caso um não funcionasse. Um dos frascos tinha uma erva abortiva chamada Tanacetum vulgare; o outro, chumbo. O médico avisou-me que tanto a erva como o chumbo eram perigosos e que eu podia morrer, mas, como me viu tão desesperada, decidiu ajudar-me.
Durante os meses seguintes, tomei a erva, tomei o chumbo, dei murros na barriga, caí escada abaixo, mas nada funcionou. Aquela coisa… aquele demónio queria mesmo viver. A minha barriga começou a crescer, foi aí que decidi fugir para a mansão no campo, longe do olhar observador do meu pai e, quando aquilo nasceu, nem consegui olhar para ele, só o entreguei no Convento das Convertidas.
— Diz-me, afinal, quem é o pai? - a voz do meu pai fez-me acordar do transe em que estava presa e apercebi-me de que na minha face escorriam rios de lágrimas. Uma raiva consumiu-me por dentro e, sem pensar, respondi-lhe:
— É um monstro! É um monstro, como aquela criança!
Desta vez foi o meu pai que, irritado, me disse:
— Eva! Como és capaz de dizer isso de uma criança? A tua criança?
Não respondi, sabia que tudo o que dissesse, o meu pai não entenderia. A maldita criança que nem morrer soube.
— Não tenho outra alternativa! - disse o meu pai cabisbaixo. - Se fosse noutras condições… tu podias ficar, mas não estás bem. Vou mandar-te para o Colégio da Regeneração, lá vais poder recuperar. Vou cuidar do meu neto, vou educá-lo, para, quando recuperares, poderes voltar para a nossa família. Espero que, enquanto estiveres no colégio, descubras como amar o teu próprio filho.
Ana Veloso N.º 4; Matilde Ferreira N.º 19 - 11.º 13
O AMOR PROIBIDO DE CONSTANÇA
Ana Cardoso
Fátima Gonçalves
Joana Ramos
Quero contar-vos a história da minha vida. Chamo-me Constança e, na altura dos factos, tinha cerca de 20 anos e vivia com os meus pais, os condes Afonso e Beatriz de Bertiandos, num palácio conhecido em Braga, o palácio era enorme, talvez o maior palácio de Braga, com grande número de divisões: átrio, escadaria azulejada, sala de entrada, salão nobre, capela, salão de música e de jogos, sala de jantar, claustro, cozinha, cavalariças, entre outras, sendo rematado por um grande jardim externo.
Numa tarde de Primavera, dia 21 de abril, estava a preparar-me para um jantar que iria ser muito importante para o meu futuro, mas mais para a frente saberão do que se tratará...
- Dilda! Podes chegar aqui por favor?
Dilda era a minha dama de companhia, ela ajudava-me em tudo, a vestir, a pentear, fazia até o papel de conselheira, era uma segunda mãe para mim.
-Sim, querida, de que precisas?
-Ajudas-me a escolher o vestido ideal para logo?
Enquanto escolhíamos o vestido, idealizávamos como seria o duque.
Duque?! Perguntam vocês; sim ia jantar com o escolhido pelos meus pais para se casar comigo e não conseguia parar de imaginar como ele seria.
-Como achas que ele será, Dilda? Imagino um rapaz, lindo, educado, gentil ... achas que ele terá olhos azuis? Castanhos? Será loiro, ou um moreno charmoso?
-E se ele for totalmente o contrário do que estás a imaginar? Feio, arrogante, sem classe e desinteressante...
Escolhida a roupa, segui para o Salão de Música e de Jogos para a minha aula de piano. Depois da aula fui ler um livro para o jardim. O jardim do palácio era o meu espaço favorito: flores variadas e coloridas em todas as épocas do ano, algumas árvores exóticas, e até uma casa na árvore que eu frequentava para dedicar à leitura. Todas as manhãs, passeava no jardim para respirar o ar puro cheio de aromas que a natureza envolvente me oferecia. Ali, sentia um grande conforto interior.
Nesse dia, a leitura foi interrompida por Zacarias que se dirigia às cavalariças com os nossos cavalos (o meu pai gostava muito de cavalos).
-Menina já viu as horas? Já deveria estar nos seus aposentos.
Percebi que já estava a anoitecer e apressei-me. Dilda já deveria estar à minha espera.
-Despacha-te, Constança, já estás atrasada!
Apressadamente coloquei o vestido e os sapatos enquanto Dilda me fazia um lindo penteado.
Ouvi a carruagem a chegar e desci, para receber o duque juntamente com os meus pais.
A minha mãe, a condessa Beatriz, era uma mulher linda, com um forte cabelo ruivo ondulado e olhos verdes; o meu pai, elegante também, tinha um olhar intenso, cor mel, e um cabelo liso escuro. Mal abriram o portão, senti um nervosinho, pois estava curiosíssima para ver como seria o duque.
Entrou, apresentou-se e fixou o seu olhar em mim. Fisicamente era alto, tinha os olhos verdes como esmeraldas e o cabelo era castanho claro; chamava-se Filipe e eu adorava aquele nome.
Já na sala de lazer, como um cavalheiro devia ser, gentilmente, ofereceu-me a cadeira para eu me sentar. Agradeci-lhe, com um leve gesto de cabeça.
Seguidamente, o duque sentou-se também com uma postura formal. Estivemos a falar, mas ... a sua conversa não me despertou interesse. Comecei a perceber que tínhamos personalidades distintas, ele só falava de si mesmo e adorava engrandecer os seus bens e o império do pai.
-Ao longo do tempo, o meu pai foi construindo uma vasta fortuna devido aos negócios que estabeleceu na Índia e nos novos mundos.
-Já vi que a minha filha e os meus futuros netos estão bem entregues ... - sussurrou o meu pai ao ouvido da minha mãe.
Depois de um curto diálogo, pedimos licença para nos levantarmos, eu e Filipe. Fomos passear para o jardim. Como acompanhava muitas vezes o seu pai de negócios, Filipe tinha aprendido a gostar de ritmos musicais diferentes, mais modernos. Sabendo que uma banda que apreciava ia tocar nessa noite, no café Vianna, convidou-me a acompanhá-lo. Os meus pais ficaram algo constrangidos, mas, depois do jantar, chamaram Zacarias para nos levar.
Era a primeira vez que entrava naquele café pois raramente saía de casa. Era amplo, repleto de espelhos de talha dourada nas paredes que os sofás vermelhos e os reposteiros punham em destaque; era um espaço agradável frequentado por muitos jovens. Também havia uma sala de jogos na parte de trás. Sentamo-nos, fomos bem recebidos e fizemos o pedido...
Para não variar, Filipe continuava a gabar-se ... então, farta da sua conversa, disse-lhe que ia apanhar ar. No momento em que abri a porta, um dos músicos esbarrou comigo e houve uma troca de olhares difícil de descrever e uma química inexplicável ...
Quando voltei para dentro, a sala estava na penumbra e os músicos tocavam algo romântico pelo que percebi. Já era tarde e decidimos voltar; Filipe deixou-me no palácio e despedimo-nos.
Mal me deitei, não parei de pensar no músico. Dilda apareceu para saber como tinha corrido a noite.
- Então, menina, como correu o encontro?
-Podia ter corrido melhor... Filipe não é, com toda a certeza, a pessoa com quem quero passar a minha vida!
-Mas ... essa cara ..., vejo que estás muito contente! Afinal, o que se passou?
-Ah... não te escapa nada, não é?
-Conta-me lá o motivo dessa felicidade.
Resumidamente, contei-lhe o que se passara:
-Senti algo inexplicável quando me esbarrei com um dos músicos: era lindo, de cor negra, um olhar simpático, possuía um sorriso franco, cativante que me deixou sem palavras!
-Ai, ai! Os teus pais não vão gostar da decisão, menina Constança ...Mas, agora dorme que amanhã vão ser um dia longo. Boa noite!
-Boa noite, Dilda.
No dia seguinte, levantei-me, vesti-me, prendi os meus longos cabelos louros e dirigi-me à sala para tomar o pequeno-almoço. Entretanto chegaram os meus pais e conversei com eles acerca da desilusão que o duque tinha sido para mim e que não sentira qualquer afinidade por ele. O meu pai não aceitou muito bem, porém a minha mãe compreendeu perfeitamente. Nesse dia à noite, não resisti à tentação e, sem os meus pais saberem, fui ao Café Vianna para o ver. No fim do concerto, trocamos olhares e ele decidiu sentar-se a meu lado para conversarmos.
- Olá, por aqui de novo? Desde já, peço desculpa do nosso pequeno "encontrão"...
Rimos, descontraidamente.
- Gostei bastante das vossas músicas e decidi voltar.
-Já agora, como se chama?
- Constança ... e o "senhor distraído"?
-Ah! Ah! - Gargalhou - Chamo-me Inácio. Não veio com o seu namorado?
- Qual namorado?!
- Aquele que estava consigo ontem à noite.
-Ah! Sei a quem se refere, mas ele não é meu namorado... para lhe contar a verdade, estávamos a ter um encontro, que foi decidido pelos meus pais.
- Mas, então não pretende ficar com ele?
Expliquei-lhe o porquê de não o querer para noivo. Falamos durante algum tempo e, como já estava a ficar tarde, decidi regressar e Inácio ofereceu-se para me acompanhar até casa.
Quando chegámos, despedimo-nos e entrei. Voltei-me para trás quando ouvi Inácio chamar-me.
-Amanhã, podemos encontrar-nos na Fonte do Ídolo?
-Claro que sim ... então, até amanhã!
-Boa noite!
Agradeci, sorri-lhe e voltei para o palácio. Subi as escadas e dirigi-me ao quarto para dormir; tinha sido uma noite cheia de emoções. Na manhã seguinte, fiz a minha rotina habitual, mas, de tarde, decidi praticar mais tempo de piano, sentia-me inspirada para a música! Passado algum tempo, jantei, e porque não podia estar sempre a sair (era uma jovem condessa e tinha que ter um comportamento como tal), pedi a Dilda ajuda para "fugir", sem que os meus pais notassem. Mais uma vez, fui ter com ele.
Inácio já se encontrava na Fonte do Ídolo. A lua iluminava o recinto; conversamos algum tempo e, inesperadamente, ele foi buscar a viola que estava por detrás da fonte e fez-me uma serenata. Foi um momento encantador: Inácio, a serenata, o silêncio daquele monumento milenar em pedra ... Mas eu tinha que regressar. Decidimos ir para o meu jardim, entramos pelas traseiras e ficamos lá mais um pouco, até que me apercebi que Zacarias estava a colocar os cavalos nas cavalariças e podia apanhar-nos ali. Então, Inácio disse que era melhor retirar-se e ... de repente, só me lembro de sentir aqueles lindos lábios. Beijamo-nos e, a partir daquele beijo, percebi que era ele que eu queria para o meu futuro. Fui-me deitar e não parei de pensar nos acontecimentos daquela noite; cada vez tinha mais vontade de estar com ele.
A partir desse dia, continuamos a encontrar-nos e, numa noite de verão, ele convidou-me para ir assistir a mais um concerto que ia fazer no Café Vianna. Dedicou-me uma música juntamente com asua banda e a mascote (a mascote era um boneco que o Café Vianna adotou e com a qual procurava homenagear a banda: era de cor negra e vestia igual aos membros da banda de Inácio). No final, a banda parou e Inácio pediu-me que chegasse mais perto e ajoelhou-se para pedir a minha mão. Confusa, saí a correr; Inácio veio atrás de mim, pegou-me no braço, abraçou-me e nesse momento, não contive as minhas lágrimas.
-Desculpa, os meus pais não vão aceitar esta relação. Não devíamos ter continuado com estes encontros ....
-Constança, eu amo-te! Independentemente de os teus pais não aceitarem a nossa relação, nós temos de tentar.
- Tens razão. Quando estiver preparada, falo com os meus pais, até lá mantemos a relação em segredo...
Inácio concordou e estivemos dois meses assim.
No dia 15 de setembro, no meu aniversário, Inácio fez-me uma visita, à noite, no jardim do palácio. Zacarias espiou-me e contou o que tinha visto aos meus pais, mas eu só o soube no dia a seguir. Na manhã seguinte, os meus pais disseram que queriam falar comigo. Ambos estavam com sérias e fortes expressões, o que me fez perceber logo do que se tratava. Nesse momento, parecia que o meu mundo tinha desabado. Tive uma forte discussão com eles, o meu pai estava totalmente em desacordo com a nossa relação.
- O que achas que vão pensar de nós ao ver a filha do conde de Bertiandos com alguém que nem pertence sequer à burguesia? Para além do mais, é negro! Onde já se viu tal disparate?
- Pai, o senhor está a ser injusto! Só quer saber do que pensam acerca de si e não quer saber da felicidade da sua única filha! Acha isso correto? Quer ver-me casada com alguém que me deixe infeliz? Parece que sim...
Saí dali a correr e fui chorar para o meu quarto. Ao jantar, já estávamos mais calmos e pedi-lhe uma oportunidade para conhecer Zacarias. Podia ser que mudasse a sua opinião acerca dele e que se apercebesse do quanto ele me fazia feliz. O meu pai nem me respondeu, estava muito zangado comigo.
Andei uma semana completamente desolada, sem chão, não falava com ninguém, nem mesmo com Dilda. Já não passeava de manhã no jardim para respirar o ar puro da natureza e quando olhava pela janela ainda me lembrava do local onde estivera com Inácio. Não parava de pensar nele, os nossos momentos não me saíam do pensamento, estava cheia de saudades, mas o que me entristecia mais era o facto de o meu pai não querer saber da minha felicidade e estar apenas preocupado com o que os outros iriam pensar. Evidentemente, o meu pai reparou que eu andava bastante triste e, um dia, apareceu no meu quarto para conversarmos.
- Bom dia, filha, podemos conversar?
- Se for por um bom motivo, sim... - disse eu, desinteressada.
- Reparei que tens andado muito em baixo e penso que possa ser pela ausência de Inácio... Estive a pensar bastante e vou dar-te a oportunidade de trazeres Inácio cá a casa para o conhecer.
- Muito obrigado, pai, vai adorá-lo. Tenho a certeza!
Parece que o meu sorriso contagiou até o ambiente ao meu redor, um sol nasceu no meu quarto, desci as escadas e pedi a Zacarias que me levasse à cidade para contactar com Inácio e convidei-o para jantar em casa com os meus pais. Ele ficou muito contente.
Nessa noite, fui eu própria abrir o portão a Inácio. Ele estava lindo, com um fato azul escuro, camisa e borboleta branca a sobressair. Abracei-o de imediato. Seguimos para a sala de jantar, apresentei-o aos meus pais e sentamo-nos todos. A conversa estava a fluir muito bem sobre viagens, política, música ... o meu pai estava a adorá-lo (tal como eu tinha previsto), até já estavam às gargalhadas! Os meus pais gostaram bastante dele e perceberam que era um bom partido para mim.
Passado cerca de um ano casámos e os meus pais não podiam estar mais felizes ao ver-me feliz também. Hoje temos dois filhos lindos, a Leonor e o Dinis, ambos bastante parecidos com os avós paternos e maternos e são uns meninos muito adoráveis. Se não tivéssemos ultrapassado os preconceitos e as dificuldades, não teríamos chegado à verdadeira felicidade.
Ah! Já me esquecia de vos dizer que, todos os anos, festejamos o aniversário do nosso abençoado "encontrão" no acolhedor Café Vianna, sob o olhar cúmplice da mascote ...